Dormi ao volante. A batida
foi forte. O motor saltou de dentro da estrutura do carro e eu fiquei ali,
imóvel. Imediatamente após o acidente, alguém chegou perto e fechou meus olhos
com dedos ásperos. Tentei abri-los, mas não consegui dominar os músculos das
pálpebras. As pessoas ao redor de mim ficaram nervosas ao segurar meu pulso.
Elas não sabiam o que fazer diante da morte. Umas delas logo se afastaram do
meu corpo. Já outras poucas ousaram aproximar-se. Senti certo prezar mórbido na
sua respiração. Não, ninguém conhecia aquele gaúcho da classe de 54. Alguém colocou
a mão no meu bolso e, discretamente, passou a mão na minha carteira. No outro
bolso estava meu celular. Um motoqueiro vasculhou meus endereços nele. Falavam
baixinho. Num dado momento uma senhora discou o número 101 com discrição. Logo
depois soaram as sirenes do Corpo de Bombeiros. Viajei numa carroceria fechada,
dentro de um recipiente de latão, até uma sala lúgubre. Ali me despiram e, logo
depois, me deram um banho com a água gelada que brotava de um esguicho
metálico. Os funcionários agiam profissionalmente, mas mesmo assim se sentiam
incômodos com minha presença inerte. Era por isso que faziam piadinhas a meu
respeito. Outro dia li que este pessoal que trabalha com mortos precisa de
acompanhamento psicológico de quando em quando. Tratava-se de uma “catar-se”.
Encheram minha boca e minhas narinas com uma espécie de cimento branco. Colaram
meus lábios com fita adesiva para que se endurecessem fechados. Vestiram-me com
o terno que, um dia, eu comprei para a Festa de Casamento da Ella. Estava
difícil de vesti-lo em mim, por isso rasgaram-no nas costas. Deitaram-me dentro
do caixão e ajeitaram minhas mãos, ainda amolecidas, como se eu estivesse
orando. Colocaram-me dentro de um automóvel branco. Rodei durante trinta
minutos dentro daquela caixa, até que me descarregaram num necrotério. O cheiro
de flor e cera queimada das velas me incomodava um pouco. Minha esposa,
companheira de mais de 40 anos, e meus filhos choravam ao meu lado. Um dos meus
garotos se mostrava calado, talvez lembrando que ainda poderia ter me dito isto
ou aquilo. O outro, em alguns momentos, chorava choro solto, talvez se
lembrando de que tinha tentado dizer tudo o que podia. Uma das minhas noras se
apresentava extremamente séria, já a outra sempre tinha os olhos marejados. Amigas
e amigos vinham dar abraços, disfarçando sua tristeza atrás de óculos escuros.
Um pouco mais longe, eu ouvia o burburinho. Gente lembrando-se do meu passado,
mas também não querendo lembrar. Eu sentia o cansaço nas pessoas que me
ladeavam. Havia muito movimento. No fundo, mas bem no fundo, esse povo esperava
que aquele momento chegasse ao fim. Algumas e alguns passaram a mão na minha
testa, sem se perguntar se eu desejava aquele gesto. Havia muitas pessoas em pé
no pequeno recinto. A conversa aumentava de volume. De repente, depois de muito
tempo, o povo que se despedia de mim se aquietou com a chegada do Pastor da
Comunidade na qual eu, aposentado, participava. Ele se fez acompanhar do Pastor
Sinodal que ainda ajudei a eleger. Os dois se apresentaram debaixo de seus
talares pretos. Sob os meus pés a minha família colocou o talar que, sempre
ainda em uso, um dia, em 1977, me foi presenteado por um grupo de amigas e
amigos. Do lado dele, combinando com o preto, estava a bandeira do Grêmio com
suas três estrelas amarelas. Sim, o meu Pastor se preparara para aquele momento
– senti isso. Não quis dizer bobagem e, por isso, fez pesquisa no meu Blog; no
Facebook; nos arquivos da “empresa” (IECLB) em que trabalho. Ali ele descobriu
que já militei no Encontrão e no PT; que já fui Evangelista de Tempo Parcial
nos anos 80 e 90; que dediquei quase todo meu pastorado em prol de jovens
secundaristas e universitários; que já “pintei o sete” no sul do Brasil, nesta
igreja oriunda de Lutero; que, no final do meu Ministério, me descobri feliz na
Comunidade de Itoupava Central. Ouvi-o apontando para a perspectiva da
ressurreição; consolando àquelas e aqueles que, de fato, já sentiam saudades.
Nunca mais poderei saborear aquela cervejinha com o Sr. Adamastor; aquele café
esperto com a Dona Regina. Ouvi a oração do Pai Nosso. Pela experiência eu
sabia que tudo se encaminhava para o fim. O pessoal da funerária se aproximava
discretamente. Eles queriam fechar a tampa da caixa fúnebre, pois tinham
horários para cumprirem. Isso era preciso. Agora a saudade deveria ser trabalhada
em quem ficava. O luto das pessoas presentes duraria mais ou menos um ano. Se
passasse disso, precisariam buscar ajuda psicológica profissional. Senti o
abafamento do tampão se fechando sobre mim. Agora apertavam os parafusos de
rosca sem fim. Aprendi a apertá-los até meia volta antes de quebrar enquanto
fui mecânico, no início da década de 70. Foi o meu avô Reinbold quem me ensinou
isso. Gente querida agarrou nas seis alças. Agiam sérios, como se este ato
fosse um último tributo que me prestavam. Iam quietos. Percebi que estava sendo
pesado, mas mesmo assim carregavam-me com cuidado por entre os corredores
estreitos, escorregadios e obtusos do cemitério. De repente senti um pequeno
solavanco. Eram os caibros que apoiavam o caixão para que as velhas e secas cordas
o abraçassem. Abaixo de mim estava a cova, toda forrada com pedra brita. Os
responsáveis eram zelosos e, a pedido do Pastor, depositaram-me no espaço oco e
seco. Senti-me mergulhando no ar. O Pastor leu o Salmo 23. Sim, ele se preparou
bem para realizar o Ofício, mas sua voz demonstrava inquietude, uma vez que
sabia da minha história; que queria poder dizer um pouco mais daquilo que
sabia. Coisa boa que não falou “abobrinhas” neste momento de dor, para as
minhas queridas e os meus queridos. Jogaram pétalas de flores sobre meu caixão.
Daí então a colher do pedreiro passou a atritar com a areia e esse ruído me faz
perceber que tampavam a sepultura. Tudo começava a ficar extremamente mais escuro.
E agora? O que seria de mim? Não ouvia quase mais nada. Não sentia mais fome,
sede e nem tampouco saudade. Eu que um dia escolhera minha profissão para nunca
experimentar a sensação da solidão, de repente me sentia só; muito só. Ouvi ou
pensei ter ouvido uma salva de palmas. Eu estava no “hades”, palavra hebraica
que, traduzida para o Português significava “inferno” e que, na minha língua de
teólogo não dizia outra coisa do que “debaixo da terra”. Não me desesperei.
Sabia que Deus já vinha me acolher com Seu abraço quente e apertado;
presentear-me com um corpo novo. Foi então que experimentei mais um milagre! O
espaço exíguo onde me encontrava se “agrandou”, a escuridão ao redor de mim se
converteu em luz. A alegria se fez presente naquele cubículo. Eu me levantei. Não
havia mais muros entre mim e a vida. Percebi que tinha sido guindado ao Reino
de Deus do qual eu, em vida, dizia “ainda não”. Senti vontade de cantar;
jubilar. Vi, de relance, que não carregava mais a cicatriz oriunda do prego
enferrujado que rasgou a parte interna da minha coxa direita, aos seis anos de
idade, enquanto brincava só, lá embaixo, entre tábuas velhas onde, um dia, meu
pai tinha matado uma jararacuçu. Minha diabetes Tipo 2 já era passado. Eu não
precisava mais judiar meus rins com medicamentos. Assentei-me no assoalho macio
de um ambiente enorme e isento de paredes. O ar ali era puro. Não havia
necessidade de casaco. Sim, eu vivia numa nova terra, isenta de barulhos, de
tristezas, de frio, de calor, de agonias... Não! Eu não sentia falta das coisas
que me eram caras, nem do Jornal O Caminho. Experimentava comunhão com o Pai do
qual era mais um dos filhos que retornava. Serviram-me um chimarrão montado com
erva-mate sem sabão. Alguns tomavam cafezinho sem cafeína. Outros bebiam chá
sem veneno. Quanta comunhão! Revi a Romilda, o Lauro, o Osmar, o Luiz, o Ari e
tantas outras irmãs e irmãos das quais e dos quais sentia saudade. E os meus
sentimentos foram se sucedendo, um mais bonito que o outro...
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Um comentário:
Lindo texto, Renato. Me deparei com ele agora, meio que por acaso. Várias vezes já pensei a respeito da "minha morte". Compartilho muito do teu sentimento em relação a isso. Abraço!
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