Estou tendo a oportunidade de expressar alguns pensamentos sobre o tema “Família”. Tento cumprir esta tarefa fazendo-o a partir de perspectiva cristã. Não tenho a pretensão de trazer uma palavra final sobre esse assunto. O meu objetivo é, simplesmente, levantar alguns estímulos para que o diálogo sobre este assunto aconteça - nada mais do que isso.
Hoje se “joga todas as fichas” na busca de um conceito para a “Família do Futuro”. Confesso que os termos “Família Cristã” e “Família Ideal” me fazem experimentar algum desconforto. Nunca fica muito claro o que se imagina por “Família Cristã” ou “Família Ideal”, daí que me pergunto: - Será que este “idealismo” é mesmo tão “cristão” como imaginamos que ele deva ser? Sim, eu tenho cá as minhas dúvidas e não vou me eximir de repartí-las com vocês, mesmo que discordem de mim. O fato é que carrego a impressão que, como cristãs e cristãos, deveríamos nos envolver muito mais com este tema.
Nós, a cristandade, somos os autores e os agentes dessa discussão sobre a “Família Cristã”. Sendo assim, nos cabe a pergunta: - Assumiremos a tarefa de entabular discussões neste sentido dentro da sociedade? Estou convicto que estes termos “Família Cristã” e “Família Ideal” se tornaram independentes, ou seja, converteram-se num clichê que se diz da “boca pra fora”, mas que não se vive na realidade. Cada um entende estas expressões do seu jeito e pronto - acabou. Ora, isso quer dizer que, como cristãs e cristãos, nos cabe redefinir o termo “Família Cristã” com palavras que, novamente, nos digam alguma coisa.
Quais os conteúdos que se discutem sobre esta temática na autalidade? Uma resposta para esta pergunta não é fácil de ser dada. Carrego a impressão de que exista uma idéia comum que gere as formas do pensamento da maioria das pessoas. Sim, há um jeito de se pensar sobre esse assunto que está pautando as cabeças, tanto de conservadores como de liberais. A “Família Ideal” é composta pelo pai; pela mãe e pela filha ou filho. Uma vez “embarcados” nesse pensamento mais engessado, espera-se que a criança seja filha biológica de ambos os pais; educada pelos referidos pais que, inclusive, também precisam ser casados de papel passado. As pessoas marcadas por uma liberalidade mais moderna já não aderem de forma tão rigorosa a este “Ideal de Família”. Mesmo assim, comungam secretamente com ele. Percebe-se isso quando afirmam: - “Não tem que ser sempre assim, pois sempre há as circunstâncias desfavoráveis. O fato é que seria bom se...” Hummm... É justamente aí nesse “se” que este jeito de pensar está se mostrando cada vez mais comum, também entre jovens.
Tenho minhas dúvidas se esta “Família Ideal” (pai, mãe e filho juntos) é realmente tão cristã como se apregoa. Primeiro, porque esse “Ideal Cristão” desvaloriza; não leva em conta determinadas pessoas. Aqui penso nos pais solteiros (viúvos ou divorciados) e ou até conscientemente sós. Hoje é assim que pais não casados e ou divorciados não são mais tão marginalizados como o foram no passado. Mesmo assim o “status” de “mãe solteira” ainda não tem boa aceitação na sociedade. Para a sociedade uma mãe e uma criança sem a presença do pai não refletem uma “Família Equilibrada” e, se refletem, esta é considerada só “Meia Família”. Diz-se que o referido cônjuge não deve ter tido a coragem de assumir o casamento; que ele não deve ter dado muito de si no sentido de levar o compromisso do casamento às últimas consequências para evitar o divórcio, etc. Esse jeito de pensar que exclui a mãe solteira não pode ser taxado de cristão, pois vai claramente contra o Mandamento de Deus que faz referência do “amor ao próximo”.
Em segundo lugar, desse “Ideal Familiar” resultam termos negativos como “Família Patchwork”. Será que todas as famílias não sejam “Patchwork´s”, “Colcha de Retalhos” compostas por duas pessoas de culturas, tradições e valores diferenciados? Ora, esta “Família Misturada” desmascara o conceito de família reduzido à perspectiva biológica: Se diz que uma “Família Normal” precisa estar acompanhada de uma criança. Será mesmo? Pergunto isso porque, por si só, a descendência biológica não tem a força de formar uma família funcional.
Em terceiro lugar, duvido que a pergunta por onde começa e por onde termina a família seja respondida de igual forma dentro da História. Para os mais jovens entre nós, uma família só é composta dos pais e de uma criança. Já para as pessoas com 70, 80 anos de idade, uma tal família é considerada pequena. Esse povo mais idoso vê a família com a presença ativa dos avós e dos netos.
De repente vocês estejam se perguntando: Depois dessa introdução, será que ainda pode existir a definição de uma “Família Cristã”? Sim, penso que sim. Esta definição “Família Cristã” que vou apresentar se arraiga na Tradição Luterana Cristã.
O termo “Família Cristã” pode ser compreendido de várias formas, mas nem sempre como Jesus Cristo o concebeu. Pode nos surpreender, mas no testemunho bíblico Jesus já nos mostra o exemplo de uma “Família” um tanto estranha. Senão vejamos: Os discípulos devem seguir Jesus, sem levar em conta as suas famílias. Isto é o que lemos em Lucas 9.59-62: “A outro disse Jesus: Segue-me! Ele, porém, respondeu: Permite-me ir primeiro sepultar meu pai. Mas Jesus insistiu: Deixa aos mortos o sepultar os seus próprios mortos. Tu, porém, vai e prega o reino de Deus. Outro lhe disse: Seguir-te-ei, Senhor; mas deixa-me primeiro despedir-me dos de casa. Mas Jesus lhe replicou: Ninguém que, tendo posto a mão no arado, olha para trás é apto para o reino de Deus.” Quer dizer, quando Jesus faz o chamado para segui-Lo, não se pode ir primeiro trabalhar o luto do Pai, prestar-se últimas homenagens ou despedir-se da família... Hoje entendemos este mandado de Jesus como um tanto radical. Sim, ele também foi entendido dessa forma nos tempos neo-testamentários.
Em Marcos 3.32ss ouvimos falar de um Jesus que nega suas próprias raízes biológicas: “Muita gente estava assentada ao redor dele e lhe disseram: Olha, tua mãe, teus irmãos e irmãs estão lá fora à tua procura. Então, ele lhes respondeu, dizendo: Quem é minha mãe e meus irmãos? E, correndo o olhar pelos que estavam assentados ao redor, disse: Eis minha mãe e meus irmãos. Portanto, qualquer que fizer a vontade de Deus, esse é meu irmão, irmã e mãe.”
Até agora está claro que Jesus não rejeita a “Família”, mas a redefine. Para os judeus e para os gregos do tempo de Jesus a família tinha origem biológica e sempre uma finalidade econômica. Quando Jesus usa “termos familiares” para caracterizar a relação dos discípulos com Deus e com Ele mesmo, então, na minha opinião, Ele deixa claro que estas relações se equivalem às “relações familiares” - nada além disso.
Isso se comprova pelo fato de que, muitas vezes, Jesus cita Deus como sendo Seu “Pai”. Certamente Jesus não está se referindo a uma descendência biológica, mas apontando para uma “relação”. Deus é o Pai, no qual Jesus confiou. Essa relação já teve seu início quando Jesus tinha 12 anos de idade. Naqueles tempos Ele já descreveu o templo como sendo a “Casa de seu Pai” (Lucas 2.49). Ele aprofunda esse conceito quando fala aos discípulos que Deus também é Pai de todos os discípulos. Novamente, Ele não diz isso por razões biológicas, mas porque Deus age e se ocupa como um pai em prol dos Seus discípulos (Mateus 6 – por exemplo).
Estes conteúdos também se refletem nas Cartas Paulinas: Os membros das Comunidades Cristãs mais antigas se chamavam de irmãs e irmãos porque tinham um relacionamento de pai e filhos com Deus e porque se preocupavam fraternalmente uns com os outros. A Família é definida nos Evangelhos e também nos escritos de Paulo, a partir do relacionamento social. Vou ser mais específico: Pela solicitude amorosa de uns para com os outros que experimentavam ligação entre si. Porque Deus tem cuidado amoroso para com os cristãos é que os cristãos devem colocar a sua confiança Nele como um Pai. Assim, Deus é apresentado como um “Pai” para a cristandade. E é porque todos os cristãos têm o mesmo Pai no Céu que eles se tornam irmãos e irmãs. Por tudo isso também devem se tratar assim - como irmãs e irmãos. Pode-se dizer que a Comunidade Cristã é vista como uma Grande Família - a Família de Deus.
A Comunidade Familiar dos primeiros seguidores de Jesus e as primeiras Comunidades da Igreja Primitiva tornam-se grandes exemplos dessa Família. O critério decisivo para se pertencer a esta “Família” é a crença comum de se pertencer ao mesmo Deus e de se fazer a Sua vontade. Para se cumprir essa vontade, conforme Paulo, também é importante se levar a sério a Lei de Cristo: “Levai as cargas uns dos outros e, assim, cumprireis a Lei de Cristo.” (Gálatas 6.2). Portanto, nenhum dos membros da “Família” podem ser excluídos ou discriminados, enquanto professam sua fé em Deus. Isto é especialmente verdade para as famílias onde só exista a mãe e ou o pai. Essas pessoas chamadas de singulares não podem ser excluídas das Comunidades Cristãs, que, inclusive, tem o dever de ajudar a carregar suas cargas.
Ao mesmo tempo, nos cabe rever nossos conceitos de “Família Cristã”. Não é preciso haver o trinômio “pai-mãe-criança” para que uma família seja aceita como completa. Uma família também é cristã se for composta apenas por duas pessoas e se nela se perceber amor recíproco e preocupação mútua. Aqui penso em “pai-criança” e ou em “mãe-criança”. O mesmo se aplica às Famílias que adotam filhos; às famílias que já chamamos de “Colcha de Retalhos”. Se um padrasto e ou uma madrasta se ocupam com uma criança como se fossem mães e ou pais verdadeiros, ali também nós temos o testemunho de uma Família Cristã.
Entendo que estejamos num bom caminho aqui na São Mateus no sentido de implentarmos esta compreensão de Família, mesmo que para algumas pessoas isso seja um tanto difícil. Nós dizemos que a Comunidade é a Grande Família de Deus, desde o momento em que oferecemos “ajuda”, a partir da Diaconia, para as pessoas que caminham conosco. Nós também trabalhamos no sentido de mudar a nossa imagem da “Família” quando focamos nossos olhos nas mães solteiras; nos pais solteiros e nos seus filhos, no sentido de aceitarmos os mesmos como sendo “Família Completa”. Vamos continuar refletindo sobre este tema com nossos pensamentos sempre voltados ao testemunho bíblico dos que nos antecederam na caminhada de fé.