Logo que o P. Dr. Gottfried Brakemeier acabou de proferir sua palestra sobre o tema “
Vocação” vieram os demorados aplausos. O auditório do Clube Concórdia de Curitiba foi testemunha da alegria dos 500 obreiros e obreiras da IECLB que, animados, sorriam, se abraçavam, olhavam para frente com seus olhos tingidos do brilho da esperança. Pois foi sentado numa das cadeiras estofadas do grande salão que o querido professor, sempre alinhado, me concedeu esta bela entrevista...
O Caminho: O senhor é dono de uma longa trajetória no ministério da Igreja. Deixou-nos claro que a “
vocação” é condição essencial do ministério eclesiástico. Fale-nos mais a respeito...
Dr. Brakemeier: Um obreiro e ou uma obreira que atuam no ministério eclesiástico sem vocação assemelham-se a funcionários religiosos, nada mais do que isso. A Igreja de Jesus Cristo não pode conformar-se com tal concepção. Ela, a Igreja, reserva aos trabalhadores na seara do Senhor um papel bem mais honroso. Como obreiros e obreiras da IECLB nos cabe identificar-nos dia-a-dia com a vocação que, sempre de novo, precisa ser redefinida diante dos desafios de uma sociedade em transformação. Nunca entendamos a vocação como um diploma que, emoldurado, encontra seu lugar entre as lembranças do passado. Vocação é assunto de profundas dimensões existenciais.
O Caminho: Qual seria a diferença entre vocação e profissão?
Dr. Brakemeier: Se o ministério eclesiástico for uma questão de vocação somente, ele ficará reservado a uma categoria especial de pessoas: as "
vocacionadas". Ora, isso seria uma boa desculpa para não abraçá-la. Por outro lado, se o ministério for entendido como uma profissão entre outras, basta adquirir as respectivas competências e buscar emprego junto a entidades religiosas. Eu creio que não estamos diante de uma alternativa. Defendo a tese que o ministério eclesiástico, a um só tempo, é vocação e profissão.
O Caminho: Por favor, desdobre um pouco mais essa questão...
Dr. Brakemeier: A palavra "
vocação" provém do latim "
vocare" que significa "
chamar", "
convidar", "
atrair". Vocação é essencialmente sinônimo de convite. Aproxima-se do sentido de "
convocação". Já "
profissão" é entendida como "
atividade ou ocupação especializada". Profissão é "
oficio", é atividade específica. Uma pessoa profissional "
professa" alguma coisa. Identifica-se com sua atividade. Aqui penso em padeiros, engenheiros, psicólogas, por exemplo. Quer dizer, há diferença entre profissão e vocação, mas também não há como separar uma da outra.
O Caminho: A vocação é um privilégio das pessoas que optam pelo ministério eclesiástico?
Dr. Brakemeier: Não! O chamado de Deus se dirige à humanidade em seu todo. Deus não só reveste sua criatura humana de singular dignidade, como também a destina a ser sua parceira. O ser humano foi criado para, em responsabilidade perante Deus e em gratidão a ele, usufruir os maravilhosos dons divinos e cuidar da criação. Portanto, ele não se encontra jogado no mundo à toa nem resulta de enigmático acaso. Ele está ai por vontade divina, incumbido de cumprir um mandato. Se a humanidade perdeu a noção de sua razão de ser, de sua destinação, do sentido das coisas, é porque se esqueceu de sua vocação.
O Caminho: O sr. está afirmando que a vocação se estende a todas as pessoas cristãs e não só às ministras e ministros da Igreja?
Dr. Brakemeier: Martim Lutero já explicitou que “
ser cristão é viver a sua vocação.” Nós podemos servir a Deus onde quer que estejamos. É em sua profissão que o cristão deve glorificar a Deus e servir ao próximo. O exercício da profissão é culto a Deus no cotidiano. Sob tal perspectiva o trabalho deixa de ser algo vergonhoso, reservado a escravos, para se tornar um meio privilegiado de servir. Na concepção de Lutero importa que moldemos a nossa vida a partir da vocação, seja no trabalho ou no lazer, seja em particular ou na família, seja na Igreja ou na sociedade. Digo de outra forma: Somos chamados a nos portar como cristãos em todas as circunstâncias da vida.
O Caminho: Então quer dizer que Deus nos chama para serviços diferentes, sempre em conformidade com as nossas capacidades e para as necessidades que se apresentam...
Dr. Brakemeier: Sim! Numa Comunidade nem todos podem fazer o mesmo. Há distribuição de dons e variedade de afazeres. A uniformidade de serviços seria mortal. O mesmo se aplica à saúde do corpo social. Ela repousa sobre o fundamento da "
biodiversidade". O chamado ao serviço é sempre multiforme. O Espírito sopra onde quer e desperta gente para o trabalho na “
lavoura de Deus” conforme lhe agrada. Ao lado dos serviços espontâneos, porém, existem os serviços estruturados. Neste caso falamos em "
ministérios". A Igreja convoca pessoas consideradas habilitadas para o cumprimento de determinadas atribuições em caráter permanente ou, pelo menos, temporário. O ministério eclesiástico foi implantado pelo próprio Deus em sua Igreja. Quer dizer, o ministério que divulga o Evangelho e se encarrega da boa ministração dos sacramentos é imprescindível. Sem ele a Igreja sucumbe.
O Caminho: Explique isso melhor professor... Se Deus implantou o ministério eclesiástico então ele é especial e nem todos podem exercê-lo... É Isso?
Dr. Brakemeier: Como luteranos entendemos a vocação especial para o serviço como integrada na vocação geral de todas as pessoas. O estado de clérigo é igual ao do cristão comum. Ministério sempre tem natureza "
diaconal". Todos são chamados a atender o chamado geral de Deus à humanidade e isso não muda o de status de ninguém. Observem que o chamado ao ministério acontece por mediação da instituição eclesiástica. É ela que chama, prepara, instala, cuida de obreiros e obreiras. O exercício "
público" do ministério, pois, pressupõe uma vocação "legitima", isto é uma vocação de acordo com a "
lei", as ordens, num rito correspondente. É da ordenação que depende a autorização para o ensino público na Igreja. É claro que todo testemunho cristão deva ser "
público". Ele não pode permanecer na clandestinidade da esfera privada. Os "
ministros” e as “
ministras" devem estar habilitados a falar não somente em seu próprio nome, e, sim, em nome da Igreja. "
Ensino público" na Igreja é discurso do qual publicamente se exige prestação de contas. As qualificações exigidas para o ministério podem ser resumidas em basicamente três: a) Competência teológica - Quem exerce um ministério na Igreja deve ser capaz da avaliação criteriosa das propostas em curso no mercado religioso. Espera-se das pessoas juízo teológico, posicionamentos próprios, zelo com respeito à confessionalidade da Igreja. b) Competência missionária - Ministros e ministras na Igreja são "propagandistas" de Jesus Cristo. Para tanto necessitam de facilidade na comunicação, no diálogo e na representação. Quem tem medo do público e prefere ficar em casa em lugar de procurar as pessoas, tem o seu ministério prejudicado. c) Competência administrativa - Esta não se refere apenas ao trabalho de secretaria que também na Igreja não pode faltar. Mais importante é saber administrar diversidade, conduzir a comunidade, trabalhar conflitos. Comunidade é sempre um fenômeno plural, cuja administração exige sabedoria.
O Caminho: Então o ministério eclesiástico não deixa de ser uma profissão...
Dr. Brakemeier: Certo! O exercício eclesiástico necessita de alto grau de "
profissionalismo". Incompetência pode causar terríveis estragos, razão para não negligenciar a formação profissional dos obreiros. Mero profissionalismo é insuficiente para o exercício condigno do ministério. Claro que os servidores eclesiásticos também deverão ter garantidos os seus direitos. As comunidades têm o dever de cuidar da subsistência dos mesmos. Ainda assim a luta de classe e o sindicalismo são avessos à natureza da Igreja. As comunidades não são "
patrões", representantes do "
capital", empresas religiosas, das quais o "
trabalho", a mão de obra, os empregados devessem arrancar sua participação nos lucros. A vocação comum da comunidade e dos obreiros o impede. Se faltar a vocação, o trabalho sofre danos. De qualquer maneira, o ministério eclesiástico é impensável sem vocação.
O Caminho: Qual seria a atribuição de de uma pessoa que exerça o ministério especial?
Dr. Brakemeier: Quero frisar que a tarefa de promover a causa de Deus neste mundo cabe tanto a membros leigos como aos membros que assumiram o compromisso espacial. No entanto, quem foi chamado para o ministério eclesiástico desempenha essa vocação em caráter oficial e, na maioria das vezes, em regime de dedicação integral. Estamos profissionalmente a serviço do reino de Deus, cooperando em sua obra. Nossa atribuição consiste em edificar comunidade, ensaiar o discipulado, denunciar a injustiça, reconciliar inimigos, capacitar para a paz, evangelizar o povo, chamar a fé, habilitar ao amor, mostrar sentido, construir esperança. Ora, a causa de Deus costuma enfrentar obstáculos, resistência ou desinteresse. O evangelho não tem procura garantida e os produtos oferecidos no mercado religioso podem servir antes a ídolos do que a Deus.
O Caminho: Quer dizer que o Evangelho de Deus pode trazer dificuldades para aqueles que com ele se ocupam...
Dr. Brakemeier: Quando os frutos demoram a aparecer, temos a tendência de pensar que a nossa pregação parece não atingir as pessoas. Sentimos o cansaço, o desânimo e a rotina nos ameaça. A fé precisa ser alimentada, re-apropriada, reaprendida. Todos os questionamentos à fé provêm de fora. Está renascendo um novo ateísmo na sociedade atual. Deus, quem ainda se interessa por ele? E se as comunidades encolhem e os membros debandam para se associar aos sem-religião? Isto significa que não basta recuperar a fé para nós mesmos. É preciso partir para a ofensiva e desafiar as pessoas com o evangelho. A fé, embora não possua provas de sua verdade, tem bons argumentos a seu favor. Importa defender a fé frente aos ataques que sofre. De qualquer maneira, sem fé abalizada o exercício do ministério eclesiástico se inviabiliza. Estamos casados com a fé. E se este matrimônio vai mal, perdemos a credibilidade. Ai de nós, se a fé sumir. Nosso discurso inevitavelmente vai tornar-se hipócrita. Faz parte de nossas atribuições a permanente reafirmação da fé frente a tudo o que parece desmenti-la. E não só isto. Cumpre-nos a arte do "discernimento dos espíritos". Aqui penso não somente nas nossas igrejas irmãs, penso em termos gerais nas exuberantes ofertas do mercado religioso. No pluralismo de nossos dias, quem fornece critérios orientadores capazes de selecionar o trigo da palha? Nosso campo de trabalho é a fé. Mas este campo é disputado e se apresenta confuso, caótico, estonteante. Nós estamos casados não com uma fé qualquer, e, sim, com a Fé cristã, evangélica, de confissão luterana. Estamos comprometidos com esta Igreja que se chama IECLB. Foi através dela que Deus nos chamou. Espera-se de ministro e ministra da IECLB que saiba justificar por que vale a pena ser membro justamente desta Igreja.
O Caminho: O Sr. está nos incitando a uma espécie de "
batalha espiritual"?
Dr. Brakemeier: Nada disso! Somos chamados a procurar a afinidades dos credos religiosos em sentido micro e macro-ecumênico, sempre no esforço por construir a paz. Repudiamos a perseguição aos dissidentes. Não foi este o jeito de Jesus no trato do diferente. O mandamento do amor ao inimigo desautoriza qualquer violência em nome da religião. Mas isto não significa permissão para o "
vale tudo" no mercado religioso. Obreiros e obreiras ordenadas devem às pessoas orientação em assuntos de fé. É assim que numa "
religião de livre mercado" a tradição perde força. Ela já não mais segura as pessoas nos trilhos da fé tradicional. Verdade é que a comunidade cristã jamais tem sido algo dado. Sempre foi algo a construir. Mas o imperativo missionário se coloca hoje com particular insistência. Os entraves que a IECLB encontra nesse tocante merecem cuidadoso exame e disposição para ensaios reformadores. Embora missão seja tarefa decorrente da vocação geral das pessoas e mandato de todo o povo de Deus, cabe ao "
ministério com ordenação" especial responsabilidade. Não basta "
pastorear" o rebanho, catequizar os batizados, manter centros sociais e obras diaconais. Sem desprezar tudo isto, importa reconhecer que voltamos à estaca inicial da missão de Jesus. A IECLB não é apenas uma instituição, ela é um projeto que necessita de "
simpatizantes", ou seja, de gente que se solidariza com ela na busca do reino de Deus e de sua justiça. No século 21 o ministério eclesiástico requer redefinições.
O Caminho: O sr. está apontando para dificuldades?
Dr. Brakemeier: Não! estou falando de chances, oportunidades, promessas. Vejam como é magnífica a vocação que Deus nos reservou. Por acaso, existe algo mais importante, mais relevante, mais empolgante do que o tema da fé? E é esta a nossa especialidade. A sociedade moderna esconde a fé. Considera-a um assunto privado, sobre o qual não se fala, abrindo assim as portas para chantagens e abusos da credulidade dos não avisados. É perigoso deixar a fé ao bel-prazer de cada qual, conforme o gosto e a preferência individual. Isto uma vez porque não funciona. Fé solta e presa fácil de manipulação pela mídia, pelos demagogos e charlatães. Todos querem fazer a nossa cabeça, querem nos fazer crer em alguma coisa. Pois embora não se admita, é evidente - e este é o segundo argumento para não deixar a fé surfando livre no espaço - que fé é o maior poder da história. Todas as pessoas, enquanto não forçadas, agem de acordo com as suas convicções. Fé determina a ação, é a diretriz da conduta, conduz à biografia de indivíduos e nações. Não nos iludamos: Todo mundo tem os seus credos, inclusive os ateus. A pergunta não é: se as pessoas crêem, mas o que elas crêem.
O Caminho: O Sr. afirma que somos agentes da fé no trino Deus, da fé que tem a promessa de vencer as adversidades do mundo, de curar debilidades e de abrir futuro. No seu entender, existe serviço mais relevante do que este?
Dr. Brakemeier: A pior ameaça a este mundo, a pior crise do momento é a crise da fé à qual deve ser atribuída a maioria das demais crises que nos assolam. A derrocada da ética, a idolatria do mercado, o apego ao poder a qualquer preço, a violência que prolifera em toda a parte, tudo isto de alguma forma tem sua raiz numa fé desorientada, enferma, perversa. Certamente não dispomos de receita pronta para sanar as patologias deste mundo. É Deus quem salva. Nossa vocação é mais modesta e, no entanto, altamente salutar. Cabe-nos apontar para a fonte da qual jorra a vida. Sabemos de um endereço a que nos dirigir nas angústias produzidas por pecado, dor e morte. Mais não podemos fazer. E, no entanto, isto é fundamental. Tal trabalho, eu o arrisco dizer, é não só vital como também gratificante. Pois não é de fardo que consiste o exercício do ministério eclesiástico. Quem ainda não experimentou a alegria que ele é capaz de proporcionar? Há pessoas muito gratas pelo conforto da Palavra de Deus, pela solidariedade na hora da tristeza, pela força do evangelho. E quem sabe, às vezes enxergamos também um pouco da bênção que Deus derrama sobre o trabalho de seus servos e suas servas fiéis.
O Caminho: O Sr. tem a chance de dizer uma última palavra aos leitores e às leitoras de O Caminho...
Dr. Brakemeier: Eu reafirmo que que, muito à semelhança do que acontece com o corpo humano, também a fé necessita do pão de cada dia. Ela precisa ser alimentada. Isto acontece através de oração e meditação, ou seja, através da vivência de espiritualidade evangélica. Nossas energias vêm de "
cima", pelo poder do Espírito Santo, pela Palavra de Deus. Não menos importante é a reflexão teológica. A fé busca o entendimento. Ela quer munir-se do argumento, equipar-se para o testemunho. Para tanto é importante o dialogo, a discussão e o estudo conjunto de temas e problemas. Além disto, é óbvio que a equipação da fé exige a leitura. Insisto muito na formação continua, individual ou grupal, dos trabalhadores na seara do Senhor. A boa teologia sempre tem sido um distintivo de Igreja luterana. São muitas as razões para não enterrar este talento. Vocação ao ministério é simultaneamente um dom e um mandato. Importa não desprezar o compromisso nele inerente.